Kercia cuida da irmã Ana Clara que ficou em estado vegetativo após violência doméstica. (Foto: Videopress)
Aos seis anos de idade, a
fisioterapeuta Ana Clara Pereira Dias vivenciou a morte da mãe assassinada pelo
pai dela. O ano era 1996 e aquela criança não sabia que 24 anos depois, em
2020, ela também seria vítima de violência doméstica. Ana sofreu uma tentativa
de feminicídio pelo ex- companheiro que a deixou em estado vegetativo e
totalmente dependente de familiares. A diferença entre ela e a mãe, é que a
fisioterapeuta tinha uma medida protetiva - que visa proteger a mulher do
agressor. No caso dela, a norma não resolveu.
Para especialistas, não tem
como a medida ser 100% eficaz, mas ela é um obstáculo para os agressores e pode
evitar mortes. Em 2022, a Justiça concedeu 144 medidas protetivas por dia, o
que representa seis por hora e uma a cada 10 minutos. Foram 52.562 expedições
em todo ano. Um aumento de 8,5% em relação a 2021, quando foram 48.415
concessões. Os dados mostram como a violência contra a mulher é
alarmante.
Era dia 26 de novembro de
2020, por volta de 13h, Ana estava em sua clínica no Barro Preto, região
Centro-Sul de Belo Horizonte, quando seu agressor chegou e atirou contra ela.
Além da medida protetiva, o criminoso usava tornozeleira eletrônica, mas nada
disso adiantou. “Ele colocou papel alumínio na tornozeleira. O crime aconteceu
às 13h e o sinal informando sobre a aproximação do agressor só chegou às 15h.
Minha irmã se mudou de casa para se esconder dele, mas ele sabia onde ela
trabalhava. Eu vejo que de 1996, quando minha mãe morreu para 2020, quando isso
aconteceu com minha irmã, nada mudou. Eu acho que o sistema de medida protetiva
é falho, porque os homens não respeitam”, reclama Kercia Pereira Dias, irmã de
Ana.
Para Kercia era preciso que
o agressor ficasse preso ou que a mulher recebesse uma proteção sendo levada
para algum lugar em segurança e recebendo auxílio. A experiência da família
dela foi da ineficiência da medida protetiva, como acontece em vários casos, no
entanto, também há versões de mulheres em que a medida funcionou. Esse é o caso
da manicure Larissa Andrade, de 28 anos.
“Depois da medida protetiva
eu acho que meu agressor ficou com medo e realmente se afastou. Eu já tinha
feito mais de 10 boletins de ocorrência contra ele e nada adiantava. Eu sentia
muito medo. Ele me perseguia e ia até a minha casa. Com a determinação judicial
do afastamento, ele parou de me perseguir. Eu sei que não é uma garantia de
100%, mas acho que a partir do momento que a mulher denúncia, pede a medida,
ela vai rompendo o ciclo de violência com o agressor”, considera.
Uma pesquisa divulgada
pela Rede de Observatórios da Segurança, nesta segunda-feira (6 de
março), por meio do boletim “Elas Vivem: dados que não se calam” mostra
que a cada quatro horas, ao menos uma mulher é vítima de
violência doméstica no Brasil. O levantamento mostrou que foram 2.423
casos de violência no ano de 2022, sendo que 510 foram crimes de
feminicídio.
Pedir medida protetiva pode
evitar feminicídios, dizem delegadas
As delegadas especializadas
em atendimento à mulher, Amanda Pires e Kiria Orlandi, alertam que, apesar de a
medida protetiva em alguns casos não garantir 100% que o agressor não faça algo
contra as vítimas, como no caso da fisioterapeuta, elas são fundamentais para
evitarem os feminicídios. “Nós temos uma pesquisa elaborada em 2020 e 2021 que
mostra que 90% das vítimas de feminicídio não possuíam medidas protetivas. As
medidas são obstáculos para o agressor, elas impõem restrições de porte ou
posse de arma de fogo, inserção do autor de violência doméstica em programas
educativos, afastamento da vítima e até mesmo prisões. Elas trazem uma proteção
às mulheres”, explica Amanda, da Delegacia Especializada de Atendimento à
Mulher, em Belo Horizonte.
A delegada Kiria, da
Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Diamantina, na região
Central de Minas, ressalta que o sistema ainda é um pouco falho, já que as
comarcas do Estado nem sempre alimentam o sistema com as informações
necessárias, o que pode dificultar as prisões dos agressores. Além disso, nos
fins de semana e feriados, quando o judiciário não funciona, não tem como fazer
consultas e isso pode trazer problemas na hora de efetuar a prisão de um
suspeito.
“Existe uma falha do sistema
judiciário. Não temos um sistema unificado sobre as medidas protetivas. Temos
que ter um banco de dados nacional para que as mulheres estejam protegidas em
qualquer Estado. Precisamos fazer consultas imediatas. Além disso, precisamos
também de boas políticas públicas para que essas mulheres sejam amparadas ao
denunciarem a violência doméstica. As casas de proteção ajudam muito. É preciso
um amparo multidisciplinar”, explica.
A responsabilidade de criar
o banco nacional dos dados de medidas protetivas é do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ). Desde 2019 existe uma resolução para que esse sistema unificado
seja criado. Por nota, o CNJ informou que “em setembro passado, o CNJ aprovou
recomendação aos tribunais de Justiça para que concedam acesso aos seus
sistemas informatizados aos órgãos de segurança pública encarregados de
verificar o cumprimento das medidas protetivas de urgência. A Recomendação foi
pensada para ser posta em prática enquanto o Banco Nacional de Medidas Penais e
Prisões (BNMP) versão 3.0 termina de ser desenvolvido. O novo sistema permitirá
que os agentes policiais acessem o banco de dados de maneira on-line e
imediata, o que garantirá maior efetividade na fiscalização relativa ao
descumprimento de uma medida protetiva de urgência em vigor. Em breve, a nova
versão deve estar disponível”.
Insegurança em relação a
garantia de proteção inibe mulheres de pedirem proteção
A insegurança das vítimas em
relação às garantias de proteção se torna um obstáculo para o pedido de medidas
protetivas, na concepção da advogada Ana Cecília Gonçalves. “As razões que
levam as vítimas a não denunciar seus parceiros acontece por incerteza
acompanhada por medo de novas ameaças e agressões. Para diminuir as agressões
conjugais e evitar que se estendam ao feminicídio é preventivo que desde a
primeira agressão, verbal ou física, haja denúncia. A retirada da queixa
dificulta o avanço da prevenção”, considera.
Ainda na opinião dela é
preciso também trazer punições mais severas aos agressores. “Infelizmente o
Brasil é um dos países que enfrenta níveis alarmantes de violência contra
mulheres. As causas são incertas, entretanto é preciso repensar o comportamento
agressivo e gerar punições mais justas. “Há necessidade de novos projetos para
punir agressores de forma mais rígida, com tratamento diferenciado que
possibilite equilibrar as desvantagens sociais, pois a violência doméstica vem
fortalecendo outras formas de violência. A Lei Maria da Penha precisa ser
suficiente para interceder no problema, com recursos e projetos para revigorar
a prevenção e a resposta à violência por parte do parceiro, incluindo a
prevenção primária. O sistema tem buscado melhorias, mas as
medidas protetivas parecem não serem suficientes para
acabar com a raiz do problema”,
complementa.
Medida protetiva sozinha não
inibe crimes
A advogada ainda explica que
a medida protetiva sozinha não é capaz de proteger a mulher. No entanto, ela
impõe limites ao agressor, o que pode dificultar e até mesmo afastar suas
pretensões. Mas para a especialista, a violência doméstica é um problema
complexo e que exige uma série de políticas públicas que devem começar pela prevenção.
“É preciso aprimorar o
trabalho da rede de proteção como um todo. Quando a mulher busca ajuda, ela
precisa ter para onde ir, o abrigamento, ter auxílio para fazer a separação,
via defensoria, auxílio de assistência social. Isso temos de aprimorar.
Precisamos de políticas públicas para melhorar o atendimento como um todo. Além
da educação em relação às violências. Combater os feminicídios vai muito além
da atuação dos agentes de segurança pública, é uma questão sociocultural”,
conclui.
A advogada Júlia Valente
compartilha dessa opinião e destaca que a medida protetiva é importante, mas
que é preciso mudar a sociedade. Para ela, em alguns casos a medida protetiva
funciona e em outros não. “Em boa parte dos casos, os perpetradores de
violências acreditam que a mulher jamais terá coragem de romper o ciclo de
violência e tomar uma providência. Quando isso acontece, são inibidos. Em
outros casos, de nada adiantam, seja pela ineficiência do sistema judicial e da
polícia, seja pelo fato da mulher não tomar providências quando há o
descumprimento. É comprovado que a Lei Maria da Penha foi um passo importante
para prevenção de mortes, mas a lei nunca basta. A criminalização e a criação
de leis por si só não mudam a sociedade”.
O que a medida protetiva
garante para a mulher?
A medida protetiva garante à
mulher vítima de violência o afastamento do agressor, seja limitando o contato
físico ou qualquer forma de contato ou outras medidas que sejam aplicáveis ao
caso, como as relacionadas à proteção dos filhos ou a prestação de alimentos,
dentre outros. Na verdade, pela lei, o juiz pode determinar as medidas
cautelares que garantam a proteção da mulher em cada caso concreto.
Quem pode pedir a medida
protetiva?
Quando a mulher (cisgênero
ou transgênero) é vítima de violência em qualquer de suas formas (física,
psicológica, sexual, patrimonial, moral) baseada em seu gênero, no âmbito da
unidade doméstica, família ou em qualquer relação íntima de afeto.
Onde pedir?
Por se tratar de medida de
urgência, a vítima pode solicitar a medida por meio da autoridade policial, ou
do Ministério Público, que vai encaminhar o pedido ao juiz. A legislação prevê
que o juiz deverá decidir o pedido no prazo de 48 horas.
Caso seja constatada a
prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, o juiz poderá
aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as medidas
protetivas elencadas na lei nº 11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da
Penha.
A Lei Maria da Penha não
prevê prazo de validade para a medida protetiva, de modo que o juiz deverá
conceder o prazo conforme as peculiaridades do caso concreto.
Fonte: O Tempo