Brasil
Publicada em 06/03/23 às 08:44h
A cada dia, 144 mulheres recebem medida protetiva em Minas

Boa Nova FM

Kercia cuida da irmã Ana Clara que ficou em estado vegetativo após violência doméstica.  (Foto: Videopress)

Aos seis anos de idade, a fisioterapeuta Ana Clara Pereira Dias vivenciou a morte da mãe assassinada pelo pai dela. O ano era 1996 e aquela criança não sabia que 24 anos depois, em 2020, ela também seria vítima de violência doméstica. Ana sofreu uma tentativa de feminicídio pelo ex- companheiro que a deixou em estado vegetativo e totalmente dependente de familiares. A diferença entre ela e a mãe, é que a fisioterapeuta tinha uma medida protetiva - que visa proteger a mulher do agressor. No caso dela, a norma não resolveu.

Para especialistas, não tem como a medida ser 100% eficaz, mas ela é um obstáculo para os agressores e pode evitar mortes. Em 2022, a Justiça concedeu 144 medidas protetivas por dia, o que representa seis por hora e uma a cada 10 minutos. Foram 52.562 expedições em todo ano. Um aumento de 8,5% em relação a 2021, quando foram 48.415 concessões. Os dados mostram como a violência contra a mulher é alarmante. 

Era dia 26 de novembro de 2020, por volta de 13h, Ana estava em sua clínica no Barro Preto, região Centro-Sul de Belo Horizonte, quando seu agressor chegou e atirou contra ela. Além da medida protetiva, o criminoso usava tornozeleira eletrônica, mas nada disso adiantou. “Ele colocou papel alumínio na tornozeleira. O crime aconteceu às 13h e o sinal informando sobre a aproximação do agressor só chegou às 15h. Minha irmã se mudou de casa para se esconder dele, mas ele sabia onde ela trabalhava. Eu vejo que de 1996, quando minha mãe morreu para 2020, quando isso aconteceu com minha irmã, nada mudou. Eu acho que o sistema de medida protetiva é falho, porque os homens não respeitam”, reclama Kercia Pereira Dias, irmã de Ana. 

Para Kercia era preciso que o agressor ficasse preso ou que a mulher recebesse uma proteção sendo levada para algum lugar em segurança e recebendo auxílio. A experiência da família dela foi da ineficiência da medida protetiva, como acontece em vários casos, no entanto, também há versões de mulheres em que a medida funcionou. Esse é o caso da manicure Larissa Andrade, de 28 anos.

“Depois da medida protetiva eu acho que meu agressor ficou com medo e realmente se afastou. Eu já tinha feito mais de 10 boletins de ocorrência contra ele e nada adiantava. Eu sentia muito medo. Ele me perseguia e ia até a minha casa. Com a determinação judicial do afastamento, ele parou de me perseguir. Eu sei que não é uma garantia de 100%, mas acho que a partir do momento que a mulher denúncia, pede a medida, ela vai rompendo o ciclo de violência com o agressor”, considera. 

Uma pesquisa divulgada pela Rede de Observatórios da Segurança,  nesta segunda-feira (6 de março), por meio do boletim “Elas Vivem: dados que não se calam” mostra que a cada quatro horas, ao menos uma mulher é vítima de violência doméstica no Brasil. O levantamento mostrou que foram 2.423 casos de violência no ano de 2022, sendo que 510 foram crimes de feminicídio. 

Pedir medida protetiva pode evitar feminicídios, dizem delegadas

As delegadas especializadas em atendimento à mulher, Amanda Pires e Kiria Orlandi, alertam que, apesar de a medida protetiva em alguns casos não garantir 100% que o agressor não faça algo contra as vítimas, como no caso da fisioterapeuta, elas são fundamentais para evitarem os feminicídios. “Nós temos uma pesquisa elaborada em 2020 e 2021 que mostra que 90% das vítimas de feminicídio não possuíam medidas protetivas. As medidas são obstáculos para o agressor, elas impõem restrições de porte ou posse de arma de fogo, inserção do autor de violência doméstica em programas educativos, afastamento da vítima e até mesmo prisões. Elas trazem uma proteção às mulheres”, explica Amanda, da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, em Belo Horizonte.

A delegada Kiria, da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Diamantina, na região Central de Minas, ressalta que o sistema ainda é um pouco falho, já que as comarcas do Estado nem sempre alimentam o sistema com as informações necessárias, o que pode dificultar as prisões dos agressores. Além disso, nos fins de semana e feriados, quando o judiciário não funciona, não tem como fazer consultas e isso pode trazer problemas na hora de efetuar a prisão de um suspeito. 

“Existe uma falha do sistema judiciário. Não temos um sistema unificado sobre as medidas protetivas. Temos que ter um banco de dados nacional para que as mulheres estejam protegidas em qualquer Estado. Precisamos fazer consultas imediatas. Além disso, precisamos também de boas políticas públicas para que essas mulheres sejam amparadas ao denunciarem a violência doméstica. As casas de proteção ajudam muito. É preciso um amparo multidisciplinar”, explica. 

A responsabilidade de criar o banco nacional dos dados de medidas protetivas é do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Desde 2019 existe uma resolução para que esse sistema unificado seja criado. Por nota, o CNJ informou que “em setembro passado, o CNJ aprovou recomendação aos tribunais de Justiça para que concedam acesso aos seus sistemas informatizados aos órgãos de segurança pública encarregados de verificar o cumprimento das medidas protetivas de urgência. A Recomendação foi pensada para ser posta em prática enquanto o Banco Nacional de Medidas Penais e Prisões (BNMP) versão 3.0 termina de ser desenvolvido. O novo sistema permitirá que os agentes policiais acessem o banco de dados de maneira on-line e imediata, o que garantirá maior efetividade na fiscalização relativa ao descumprimento de uma medida protetiva de urgência em vigor. Em breve, a nova versão deve estar disponível”. 

Insegurança em relação a garantia de proteção inibe mulheres de pedirem proteção

A insegurança das vítimas em relação às garantias de proteção se torna um obstáculo para o pedido de medidas protetivas, na concepção da advogada Ana Cecília Gonçalves. “As razões que levam as vítimas a não denunciar seus parceiros acontece por incerteza acompanhada por medo de novas ameaças e agressões. Para diminuir as agressões conjugais e evitar que se estendam ao feminicídio é preventivo que desde a primeira agressão, verbal ou física, haja denúncia. A retirada da queixa dificulta o avanço da prevenção”, considera. 

Ainda na opinião dela é preciso também trazer punições mais severas aos agressores. “Infelizmente o Brasil é um dos países que enfrenta níveis alarmantes de violência contra mulheres. As causas são incertas, entretanto é preciso repensar o comportamento agressivo e gerar punições mais justas. “Há necessidade de novos projetos para punir agressores de forma mais rígida, com tratamento diferenciado que possibilite equilibrar as desvantagens sociais, pois a violência doméstica vem fortalecendo outras formas de violência.  A Lei Maria da Penha precisa ser suficiente para interceder no problema, com recursos e projetos para revigorar a prevenção e a resposta à violência por parte do parceiro, incluindo a prevenção primária. O sistema tem buscado melhorias,  mas  as  medidas  protetivas parecem não  serem suficientes para  acabar  com  a  raiz  do  problema”, complementa. 

Medida protetiva sozinha não inibe crimes 

A advogada ainda explica que a medida protetiva sozinha não é capaz de proteger a mulher. No entanto, ela impõe limites ao agressor, o que pode dificultar e até mesmo afastar suas pretensões. Mas para a especialista, a violência doméstica é um problema complexo e que exige uma série de políticas públicas que devem começar pela prevenção. 

“É preciso aprimorar o trabalho da rede de proteção como um todo. Quando a mulher busca ajuda, ela precisa ter para onde ir, o abrigamento, ter auxílio para fazer a separação, via defensoria, auxílio de assistência social. Isso temos de aprimorar. Precisamos de políticas públicas para melhorar o atendimento como um todo. Além da educação em relação às violências. Combater os feminicídios vai muito além da atuação dos agentes de segurança pública, é uma questão sociocultural”, conclui. 

A advogada Júlia Valente compartilha dessa opinião e destaca que a medida protetiva é importante, mas que é preciso mudar a sociedade. Para ela, em alguns casos a medida protetiva funciona e em outros não. “Em boa parte dos casos, os perpetradores de violências acreditam que a mulher jamais terá coragem de romper o ciclo de violência e tomar uma providência. Quando isso acontece, são inibidos. Em outros casos, de nada adiantam, seja pela ineficiência do sistema judicial e da polícia, seja pelo fato da mulher não tomar providências quando há o descumprimento. É comprovado que a Lei Maria da Penha foi um passo importante para prevenção de mortes, mas a lei nunca basta. A criminalização e a criação de leis por si só não mudam a sociedade”.

O que a medida protetiva garante para a mulher?

A medida protetiva garante à mulher vítima de violência o afastamento do agressor, seja limitando o contato físico ou qualquer forma de contato ou outras medidas que sejam aplicáveis ao caso, como as relacionadas à proteção dos filhos ou a prestação de alimentos, dentre outros. Na verdade, pela lei, o juiz pode determinar as medidas cautelares que garantam a proteção da mulher em cada caso concreto.

Quem pode pedir a medida protetiva?

Quando a mulher (cisgênero ou transgênero) é vítima de violência em qualquer de suas formas (física, psicológica, sexual, patrimonial, moral) baseada em seu gênero, no âmbito da unidade doméstica, família ou em qualquer relação íntima de afeto.

Onde pedir?

Por se tratar de medida de urgência, a vítima pode solicitar a medida por meio da autoridade policial, ou do Ministério Público, que vai encaminhar o pedido ao juiz. A legislação prevê que o juiz deverá decidir o pedido no prazo de 48 horas.

Caso seja constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as medidas protetivas elencadas na lei nº 11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha. 

A Lei Maria da Penha não prevê prazo de validade para a medida protetiva, de modo que o juiz deverá conceder o prazo conforme as peculiaridades do caso concreto.

Fonte: O Tempo




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