(Foto: Alexandre Mota)
De apito
estridente e velocidade que não passava de 23 km/h, uma embarcação batizada de
Saldanha Marinho partia de Lagoa Santa, na região metropolitana, para desbravar
pela primeira vez o Rio das Velhas até a foz com o Velho Chico, no Norte de
Minas. Algo inimaginável para os dias de hoje, o feito aconteceu no fim do
século XIX, ainda no período imperial, em um barco com 28 metros de
comprimento. No mesmo ponto que outrora guardava um leito preservado, sobrou a
água pouco abundante e a ponte batizada em homenagem ao vapor.
As lembranças de um rio que já foi navegável há 150 anos servem
de alerta para a destruição dos mananciais, cada vez mais secos. É o que
apontou um levantamento do MapBiomas sobre a superfície coberta por água em
Minas Gerais. Entre 1985 e 2020, a região ocupada pelos cursos d'água perdeu
118.000 hectares, o que corresponde a quatro vezes a área de Belo Horizonte – a
queda no período foi de 16%. O número é o terceiro maior do país, atrás apenas
de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso.
Conforme o
coordenador da entidade, Carlos Souza, a redução da disponibilidade e qualidade
da água nos mananciais é resultado das intervenções no meio ambiente,
principalmente com o desmatamento, além da construção de hidrelétricas,
poluição e o uso excessivo dos recursos hídricos por todo o país. "Ao
mesmo tempo, secas extremas e inundações associadas às mudanças climáticas
aumentaram a pressão sobre os corpos hídricos e ecossistemas aquáticos",
resumiu.
Principal afluente do Velho Chico, a situação do Rio das Velhas
é ainda pior: metade da superfície de água foi perdida em 30 anos. O
pesquisador do MapBiomas, Diego Costa, enfatizou ainda que a tendência é que os
recursos hídricos ocupem áreas cada vez menores nas próximas décadas. "No
Brasil, a bacia do São Francisco, que inclui o Velhas, é uma das que tem maior
uso. Além do enorme número de usinas de energia que interferem nas vazões e na
fauna fluvial, há também muita captação para a agricultura", destacou.
Entre a nascente em Ouro Preto, na região Central, e a foz em
Barra do Guaicuí, o Velhas percorre um trecho de 801 km e ainda garante a
segurança hídrica para toda a Grande BH, com quase seis milhões de habitantes.
A principal área de recarga fica no quadrilátero ferrífero, com forte atuação
da mineração. "As empresas provocam os rebaixamentos dos lençóis freáticos
dessa região para captar água e levar o minério. Há um grande impacto nas
serras da Moeda, Curral, Gandarela e Rola Moça, com crateras enormes que trazem
consequências para todo o entorno", explicou o coordenador do projeto
Manuelzão, Marcos Vinícius Polignano.
São Francisco perdeu 15% da superfície de água em 30 anos
Das águas que correm para matar a sede no semiárido brasileiro,
o pedido de socorro com a exploração desenfreada. Nos últimos 30 anos, mesmo
com as grandes represas criadas para gerar energia, o Velho Chico viu a
superfície coberta com o recurso hídrico cair 15%. Enquanto os afluentes secam,
o coordenador do Manuelzão alertou sobre as transposições desenfreadas do rio
para compensar a perda de água nessas áreas.
"O que é acontece é inverso. Ao invés dos afluentes
alimentarem o rio, passam a receber a água do leito principal. Na semana
passada mesmo, o estado lançou uma obra que vai captar no São Francisco e levar
para o Rio Picão, em Bom Despacho. Não tem salvação, é uma degradação sem
planejamento. E agora falam de crise energética hídrica, mas todos já sabiam
que isso ia acontecer. Nos dias de hoje, temos previsões para até cinco
anos", pontuou.
Água insuficiente em 65 pontos de Minas
Diante dos períodos de seca cada vez mais severos, aliado à
degradação ambiental, Minas Gerais teve recorde de áreas em que a água que
chega dos rios e córregos é insuficiente para abastecer todos os usuários:
segundo relatório anual do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) no ano
passado, eram 65. Em 2015, ano de uma das maiores crises hídricas na história
da região, o número chegou a 57.
As regiões mais críticas ficam na bacia do Rio Paranaíba, no
Triângulo Mineiro e Noroeste do Estado, e também no São Francisco. Há ainda
problemas nos rios Paracatu, Paraopeba e Pardo, cuja demanda por água pode
ultrapassar 100% da vazão do leito. "Tem havido um desmatamento absurdo,
com uma ocupação pouco planejada do território, especialmente no cerrado. O
agronegócio não perdoa e vai com força total ao invés de fazer um processo mais
equilibrado com áreas de preservação. E esse é o resultado", sintetizou
Polignano.
Fonte: Jornal O Tempo